





Música •
Orquestra Sinfonietta de Lisboa
Concerto - A luta pela paz nos 80 anos da vitória sobre o nazifascismo
Sexta-Feira, 5
21:00, Palco 25 de Abril
O concerto sinfónico que abre o Palco 25 de Abril na Festa do Avante! celebra este ano os 80 anos do fim da II Guerra Mundial, assinalando a vitória sobre o nazi- -fascismo e reafirmando o valor da luta pela Paz. Esta edição presta também uma homenagem ao povo palestiniano.
O concerto será dividido em quatro partes:
1. Música “Degenerada”
Os nazis chamavam-lhe “música degenerada” — obras censuradas por razões raciais ou ideológicas. Esta parte apresenta composições de Boris Blacher, Paul Hindemith e Alexander von Zemlinsky, vozes silenciadas que hoje podemos celebrar.
2. Guerra e Resistência ao Nazismo
Evocando a resistência heróica ao nazismo, ouviremos uma obra dedicada ao Exército Vermelho de Mieczysław Weinberg, um andamento sinfónico de Hanns Eisler e uma versão comovente da célebre canção popular da II Guerra Mundial Lili Marleen.
3. Música dos Campos de Concentração e de Extermínio
Uma secção profundamente emotiva: peças compostas por prisioneiros em Theresienstadt, como Ilse Weber e Viktor Ullmann, e uma obra de Karl Amadeus Hartmann dedicada aos presos de Dachau.
4. “A Grandeza do Espírito Humano” e a Luta pela Paz
A força da criação em tempos de destruição: uma obra de Mahmoud Abuwarda, dedicada aos palestinianos da Faixa de Gaza, e o último andamento da Sinfonia n.º 5 de Prokofiev, que a dedicou à vitória na guerra e “à grandeza do espírito humano”, na esperança de um mundo de paz.
Intérpretes
– Orquestra Sinfonietta de Lisboa
– Maestro Vasco Pearce de Azevedo
– Barítono: Armando Possante
– Pianista: Ricardo Martins
Vai ser, dia 5 de setembro, na Atalaia, um concerto de memória, resistência e futuro.

A exposição em Munique de 1937 atraiu muito público
“Música Degenerada”
O grande capital esgotara na Alemanha dos anos 30 as soluções políticas quer para a crise capitalista existente, quer para as lutas sociais oponentes, inspiradas pela Revolução de Outubro. Apostou no “partido nacional-socialista” de Adolph Hitler, na ideologia nazi, dando-lhes todo o apoio financeiro necessário para se guindarem ao poder.
Com o silêncio cúmplice da Europa burguesa que, enquanto pode, soprou as labaredas hitlerianas para leste, o nazismo tentou fundamentar-se em narrativas mitológicas alegadamente científicas, que sugeriam a “raça ariana” como povo escolhido. Criou um inimigo público mobilizador de ódios – o povo judeu – e, simultaneamente, biombo encobridor dos investimentos milionários e do “caderno de encargos” correspondente. Dentro da lógica da louca histeria colectiva suscitada, em que ninguém ousa dizer que “o rei vai nu”, edificou-se uma ideologia e uma narrativa mitológica despóticas, que não admitiam desvios, diferenças ou alternativas, ou seja, “degeneração”.
Um artigo de juventude do compositor Richard Wagner (1813-1883) – Der Judentum in der Musik (O Judaísmo na Música) –, foi a base artística e musicaL anti-semita do III Reich. O nazismo era, portanto, monstruosamente anti-semita e racista, mas também não menos anticomunista e antimoderno. Praticou uma verdadeira “guerra cultural” contra o “bolchevismo artístico” e contra qualquer presença na arte do judaísmo.

Cartaz da exposição nazi
Em 1937 é organizada em Munique uma Exposição Entartete Kunst (Arte Degenerada), onde para além de se ostracizar, pretendia-se ridicularizar os artistas visados e mobilizar o ódio popular em histeria contra aquelas obras, aqueles géneros, aqueles autores. Em 1938 é a vez de Düsseldorf receber a exposição Entartete Musik (Música Degenerada), cujo cartaz apresentava um negro, trompetista de jazz (género “degenerado”), com uma estrela de David ao peito, atingindo os autores Kurt Weill (1900-1950) e Ernst Krenek (1900- -1991), que, entre muitos outros, foram influenciados por este novo género musical, tendo o último estreado em 1927, com muito sucesso, a ópera Jonny spielt auf em que a influência jazzística é notória.
A triste exposição Entartete Musik tinha como objectivos declarados eliminar:
1 – A influência do judaísmo;
2 – Arnold Schönberg (1874-1951), (inventor do “degenerado” dodecafonismo);
3 – Kurt Weill e Ernest Krenek (autores progressistas, influenciados pelo degenerado Jazz);
4 – “Bolchevistas menores”, como Franz Schereker (1878-1934) e Alban Berg (1885-1935);
5 – Leo Kestenberg, responsável pela educação musical, demitido em 1933;
6 – As óperas e oratórias de Paul Hindemith (1895-1963);
7 – Igor Stravinsky (1882-1971).
De relevar que, enquanto este último, exilado russo e antibolchevique, sempre protestou por estar presente nesta lista, o húngaro Béla Bartok (1881-1945), incompatibilizado com o regime pró-nazi do seu país e por solidariedade com os seus colegas alemães perseguidos, solicitou a sua inclusão. Antes de partir, destroçado, para a América, ordenou que as suas obras nunca fossem radiodifundidas para a Itália ou a Alemanha e abandonou a editora Universal Musik, austríaca e sob o domínio de Hitler, em prol da Boosey and Hawkes de Londres.
Os compositores

Boris Blacher
(1903-1975)
Fixou-se em Berlim (1921) para estudar na Escola Superior e Universidade (1924-1931), sustentando-se como copista e arranjador musical. Apesar dos êxitos das primeiras obras, os nazis depreciam-lhe a linguagem moderna e livre – do dodecafonismo ao jazz – e o não-arianismo. Mesmo assim é convidado para o Conservatório de Dresden (1938) e forçado a resignar em 1939, por ensinar compositores “degenerados”, nomeadamente Hindemith. A incompatibilidade com a doutrina nazi desmorona a sua carreira. Confrontado com a origem judaica do seu avô esconde-se em Ramsau, vivendo e compondo em isolamento até ao final da guerra. A estreia de Variações para orquestra sobre um tema de Paganini em 1947 revelou-o como influente mestre e relançou a carreira internacional.
Alla Marcia (1934), estreada em 1979 e composta em plena ascensão do nazismo e das suas fanfarras. À maneira de marcha propõe-nos uma obra depurada de emoções patrióticas, onde não são despiciendos subtis elementos sarcásticos na estrutura, nos motivos e timbres escolhidos, juntando-se Blacher a Shostakowitch e Bartók na ridicularização musical do monstro nazi.

Paul Hindemith
(1895-1963)
Foge com 11 anos da oposição familiar à sua carreira de músico. Ganha a vida a tocar violino ou viola em cafés, cinemas ou grupos de jazz, estudando em simultâneo. Obtém estatuto de virtuoso a solo e no famoso Quarteto Amar e tem actividade política na social-democracia alemã. Procurou restaurar a música tonal alemã, mas depois revolucionou-a com um sistema que fez de si o maior nome da música moderna alemã. Desenvolveu o aspecto utilitário da música – a Gebrauchtmusik –, compondo obras destinadas a crianças, a principiantes ou a amadores. Dedica-se também a obras de carácter didáctico. Sob a mira nazi, compõe uma ópera – Matias, o Pintor – que o proscreve de imediato: bolchevista cultural e não-ariano espiritual (Goebbels). Exila-se, ensinando na Turquia, Estados Unidos e Suíça.
As Metamorfoses Sinfónicas… , inicialmente um bailado prestando reverência a um dos pais do romantismo musical alemão, revelam a mestria revolucionária do autor. O Allegro corresponde ao primeiro dos 4 andamentos e, se evoca a virtuosidade pianística do homenageado, junta a própria exuberância orquestral de Hindemith.

Alexander von Zemlinsky
(1872-1942)
Autoridade musical em Viena: maestro, compositor e professor. Formação no Conservatório local sob apoio de Brahms. Dirigiu as orquestras da Volksoper e da Ópera da Corte e em Praga dirigiu a Ópera Alemã. 1927/32 - responsável pelo alto nível da Ópera do Estado em Berlim. Amigo de Mahler, leccionou grandes nomes da composição: Schönberg, Berg, Webern, Krása, Korngold, Weigl, Alma Schindler e Luise Sachsel.
Partindo do Romantismo Alemão, evoluiu sem qualquer ruptura radical com a tradição vienense. No seu catálogo a ópera O Círculo de Giz é relevada por Lopes-Graça.
Surpreendido pela ascensão do nazismo em Berlim, regressou a Viena (1933) onde não exerceu mais nenhum cargo público. Em 1938, dados a anexação da Áustria por Hitler e o judaísmo de toda a sua família, parte para os Estados Unidos onde virá a falecer sem grande reconhecimento.
A Sinfonietta op.23 (1934) apresenta uma orquestração concisa e características contrapontísticas e rítmicas marcadas. O primeiro andamento lança os ingredientes dinâmicos da obra, equilibrando brilhantismo orquestral com dissimulada amargura.
A Guerra e a resistência heróica ao nazismo
Durante a Segunda Guerra Mundial, a música desempenhou um papel crucial tanto na moralização das populações como na resistência ao regime nazi, particularmente na União Soviética. O avanço do Exército Vermelho, desde a derrota alemã em Estalinegrado a 2 de Fevereiro de 1943, até à tomada de Berlim a 2 de Maio de 1945, que marcou a derrota definitiva de Hitler, foi acompanhado de várias formas de apoio moral através da música, tanto para o exército como para a população civil.
Talvez o momento mais simbólico dessa relação entre a música sinfónica e a resistência soviética tenha ocorrido a 9 de Agosto de 1942: tratou-se da estreia da Sinfonia nº 7 de Dmitri Shostakovich em Leninegrado. A cidade estava cercada há quase um ano pelas tropas alemãs. A população enfrentava fome extrema, frio e bombardeamentos constantes, com centenas de milhares de mortos. Ainda assim, o concerto decorreu na Sala da Rádio de Leninegrado, executado pela Orquestra da Rádio, composta por músicos sobreviventes — alguns retirados directamente da frente de combate ou da inanição.
A partitura da sinfonia (na Festa do Avante! de 2005 foram tocados dois andamentos dessa peça) foi transportada em segredo para a cidade por avião. Para que o concerto se realizasse, o comando soviético organizou uma ofensiva militar temporária para silenciar a artilharia alemã durante a actuação. O concerto foi transmitido por altifalantes para toda a cidade e também direccionado às linhas alemãs, como acto de desafio e afirmação moral.
Em plena guerra, os compositores soviéticos foram, muitas vezes, retirados das zonas de combate para se refugiarem em locais mais seguros onde podiam continuar a trabalhar e a criar.
Mieczysław Weinberg, um compositor judeu de origem polaca, foi uma figura central na música sinfónica soviética durante a guerra. Weinberg encontrou refúgio na União Soviética e, ali, compôs em 1942 uma das suas obras mais importantes, a Sinfonia nº 1, Op. 10. Weinberg, que perdeu a sua família no campo de concentração de Trawniki, dedicou esta obra ao Exército Vermelho, expressando a sua gratidão pela protecção que lhe foi oferecida. Esta sinfonia, da qual ouviremos na Festa o segundo andamento, é um exemplo claro de como a música pode ser usada para homenagear e reforçar a moral do exército, sendo uma celebração da força e da resistência do Exército Vermelho na sua luta contra o avanço do nazi-fascismo.

Filipe Melo é músico, realizador de cinema e autor de BD. Estudou no Berklee College of Music, em Boston. Na música, destaca-se como pianista, compositor e orquestrador
Outro exemplo significativo da música sinfónica na resistência ao nazismo vem de Hanns Eisler, um compositor austríaco, militante comunista. Eisler estabeleceu-se na União Soviética durante a guerra e dele iremos ouvir a sua Deutsche Sinfonie. Composta principalmente entre 1935 e 1947, mas não concluída no seu conjunto completo até 1957, esta obra é uma configuração de onze movimentos (ouviremos o sexto) de poemas de Bertolt Brecht e de Ignazio Silone, adaptados por Eisler, e que é uma obra que reflecte a sua dedicação à luta contra o fascismo e a sua visão política marxista. Eisler acreditava que a música sinfónica tinha um papel essencial na educação política das massas, e as suas composições muitas vezes reflectiam o espírito de luta e resistência, tal como pensava Weinberg.
Lili Marleen na guerra de propaganda

A canção Lili Marleen partiu de um poema de 1915, escrito por Hans Leip, foi musicada em 1938 por Norbert Schulze e gravada pela cantora Lale Andersen, em 1939. O poema retrata uma despedida entre um soldado e a sua amada, sob um candeeiro. Em 1941, a estação de rádio do exérci- to nazi em Belgrado começou a transmiti-la. Porém, a sua melancolia levou o ministro da Propaganda nazi, Joseph Goebbels, a proibi-la por considerá-la desmoralizado- ra, uma «dança da morte», dizia. No entanto, devido aos constantes pedidos dos soldados, a música acabou por voltar a ser transmitida, fechando as emissões da rádio, diariamente, às 21h55.
Traduzida para o inglês, Lili Marleen foi adoptada em 1942 pelo Oitavo Exército Bri- tânico e pela Sexta Divisão Blindada sul-africana, que nessa altura combatiam jun- tos, e chegou a ser usada como sinal emitido por altifalantes, ao princípio da noite, para a entrada em vigor de um cessar-fogo diário entre as forças nazis e aliadas na cidade de Tobruk.
Para esta apresentação na Festa, a canção tem uma orquestração do compositor Filipe Melo especialmente elaborada para este concerto. Embora existam vários arranjos orquestrais para esta can- ção, que se transformou numa referência da cultura oci- dental do século XX, a verdade é que há falhas na disponi- bilização de partituras para o concerto na Festa do Avante!, o que criou uma oportunidade para solicitar ao compositor a criação de um novo ambiente sonoro sobre Lili Marleen
Os compositores

Hanns Eisler
(1898–1962)
foi um compositor germano-austríaco cuja obra se distinguiu pelo seu forte teor político e pelo compromisso com as causas proletárias. Estudou com Arnold Schoenberg, mas viria a afastar-se da música dodecafónica para adoptar estilos mais acessíveis, como o cabaré e o jazz. A sua estreita colaboração com Bertolt Brecht originou canções emblemáticas do movimento operário, como o “Einheitsfrontlied”. Exilado após a ascensão do nazismo, viveu em diversos países até se fixar nos Estados Unidos, onde compôs música para cinema, sendo nomeado para dois Óscares. Perseguido pelo macarthismo, foi deportado em 1948. Estabeleceu-se então na Alemanha de Leste, onde compôs o hino nacional da RDA. A sua carreira foi marcada por combates ideológicos, ataques da censura e momentos de grande reconhecimento. Eisler morreu em Berlim Oriental, deixando um legado singular na música do século XX, onde aliou vanguarda estética e compromisso político. É dele o sexto movimento da Deutsche Sinfonie que iremos ouvir na Festa do Avante!.

Mieczysław Weinberg
(1919–1996)
foi um compositor e pianista polaco-soviético de origem judaica, nascido em Varsóvia. Filho de artistas do teatro iídiche, revelou talento precoce para a música, ingressando no Conservatório de Varsóvia com apenas 12 anos. Fugiu da Polónia em 1939 após a invasão nazi, tendo os seus pais e irmã sido assassinados no campo de Trawniki. Refugiou-se na URSS, onde estudou em Minsk e depois viveu em Tashkent, antes de se fixar em Moscovo. Amigo próximo de Shostakovich, compôs em 1942 uma sinfonia dedicada ao Exército Vermelho, cujo segundo andamento foi incluído no programa deste ano do concerto da Festa do Avante!. Alcançou o seu maior sucesso profissional na década de 1960, quando a sua música foi tocada por músicos como Rudolf Barshai, o Quarteto Borodin, Timofei Dokschitzer, Mikhail Fichtenholz, Leonid Kogan, Kirill Kondrashin e Mstislav Rostropovich, entre outros. Compôs intensamente para concertos, cinema e animação, destacando-se a música do famoso desenho animado Winnie-the-Pooh.
Programa
A luta pela Paz nos 80 anos da Vitória sobre o nazi-fascismo
Música “Degenerada”
• Alla Marcia (1934) de Boris Blacher (1903-1975)
• Symphonic Metamorphosis of Themes by Carl Maria von Weber (1940, 1943), de Paul Hindemith (1895-1963). 1.º andamento.
• Sinfonietta para Orquestra Op. 23 (1934) de Alexander von Zemlinsky (1871-1942). 1.º andamento.
A guerra e a resistência heróica ao nazismo
• Sinfonia n.º 1 em Sol menor, Op.10 - Ao Exército Vermelho (1942) de Mieczysław Weinberg (1919-1996). 2.º andamento.
• Deutsche Sinfonie, Op. 50 (1934-1947) de Hanns Eisler (1898-1962). 6.º andamento.
• Lili Marleen (1937) de Norbert Schultze (1911-2002) e Hans Leip (1893-1983). Solista: Armando Possante (barítono)
Orquestração: Filipe Melo
Música dos Campos de Concentração e de Extermínio
• Miserae, dedicada “aos amigos...que dormem por toda a eternidade; nós não os esquecemos (Dachau, 1933–34)”, de Karl Amadeus Hartmann (1905-1963
• Três canções de Ilse Weber (1903-1944): – Ich wandre durch Theresienstadt – Wiegenlied – Ade, Kamerad!
Solistas: Armando Possante (barítono) e Ricardo Martins (pianista)
• Três Lieder, Op. 37, de Viktor Ullmann (1898-1944): – N.º 1 - Schnitterlied – N.º 2 - Säerspruch – N.º 3 - Die Schweitzer
Solistas: Armando Possante (barítono) e Ricardo Martins (pianista)
A “Grandeza do Espírito Humano” e a Luta pela Paz
• A Story To Tell: Gaza (2021) de Mahmoud Abuwarda (n. 1995)
• Sinfonia n.º 5, em Si bemol maior Op. 100, (1944) de Serguei Prokofiev (1891-1953), 4.º Andamento.
“Música dos Campos de Concentração”
Theresienstadt, ou Terezín, foi um campo de concentração situado na actual República Checa, criado pelos nazis em 1941. Eles transformaram o campo numa fachada para enganar o mundo sobre as suas atrocidades, apresentando-o como um “campo modelo” onde os prisioneiros supostamente viviam em boas condições. Theresienstadt albergou orquestras, grupos corais e até bandas de jazz. Os prisioneiros eram obrigados a actuar para plateias escolhidas pelos SS, que procuravam assim dar uma imagem razoável do holocausto, que pudesse ser apresentada ao mundo. Em 1944, os nazis remodelaram Theresienstadt pouco antes de uma visita da Cruz Vermelha e fizeram um filme de propaganda, Der Führer schenkt den Juden eine Stadt (O Führer Dá uma Cidade aos Judeus), filmado pelo realizador Kurt Gerron, sob a ameaça do comandante do campo, Karl Rahm. No filme Theresienstadt, são vistas crianças a cantar a ópera Brundibár, do compositor checo Hans Krása, e vê-se um outro compositor checo, Pavel Haas, a fazer uma reverência, após uma apresentação, conduzida por Karel Ančerl, do seu Study for Strings. Quando o projecto de propaganda acabou, os nazis transferiram para Auschwitz-Birkenau 18.000 prisioneiros, incluindo Pavel Haas e as crianças que cantavam em Brundibár. Foram todos assassinados nas câmaras de gás. Aliás, nesse dia 17 de Outubro de 1944, foi morta toda uma geração de músicos talentosos e virtuosos: além de Pavel Haas, pereceram Viktor Ullmann (do qual iremos ouvir algumas peças no concerto da Festa do Avante!), Bernard Kaff, Hans Krása, Viktor Kohn, Egon Ledeč e Carlo Sigmund Taube. Outra figura notável de Theresienstadt foi Ilse Weber, da qual também serão cantadas por Armando Possante algumas canções no concerto sinfónico da Festa, compositora e poeta que criou várias canções, como Wiegenlied e Ich wandre durch Theresienstadt, que expressavam a angústia, a dor, mas também a resistência e a esperança dos prisioneiros. Também ela foi assassinada em Auschwitz-Birkenau em 1944, cujo campo também chegou a ter seis orquestras no seu enorme complexo. Para além das peças de Viktor Ullmann e de Ilse Weber, que representam a infâmia e, ao mesmo tempo, a grandeza humana da criação artística produzida nos campos de concentração e extermínio dos nazis, o concerto da Festa ainda apresentará a composição/denúncia intitulada Miserae, do compositor alemão Karl Amadeus Hartmann, dedicada aos prisioneiros do Campo de Dachau, o primeiro a ser criado pelos nazis em Março de 1933, localizado a 16 quilómetros de Munique, e que motivou, logo nesse ano, essa criação de Hartmann.
Um canto de glória da humanidade livre e feliz
O Allegro Giocoso da 5.ª sinfonia de Prokofiev, op. 100, em Si bemol maior, encerra o nosso concerto. De carácter triunfante sem cair no sentimentalismo, neste andamento Prokofiev recorre a diversos elementos técnicos que dão uma dimensão audível à luta pela paz em tempos de guerra, podendo o ouvinte escutar nesta obra quase um epílogo sonoro da II Guerra Mundial.
A partitura foi escrita na Casa de Criação dos Compositores de Ivanovo, no Verão de 1944. Criado em 1943 pela União dos Compositores da URSS, este espaço assegurava as condições para a criação musical, num gesto que visava mobilizar a cultura para a elevação moral em tempos de guerra. Concebida como «uma sinfonia sobre a grandeza do espírito humano, um canto de louvor ao Homem livre e feliz, à sua força, à sua generosidade e à pureza da sua alma» (Prokofiev 1945), a obra é um símbolo da força criativa da humanidade, onde os processos de deformação rítmica e a recodificação dos temas principais, a tensão entre a forma clássica e a ironia, e o carácter transversalmente triunfante são marcas de uma celebração ambígua entre a iminência da paz e o eco da destruição da guerra.

Serguei Prokofiev
Escutamos esta tensão logo no início, com uma leveza temática nos sopros que rapidamente é subvertida por ritmos sincopados e alterações métricas que desestabilizam essa segurança inicial. Mais à frente, o ostinato nas cordas evoca a marcha da guerra. O jogo tímbrico é também fundamental para a mecanização alusiva ao efeito desumanizante da máquina bélica, nomeadamente no recurso a registos extremos nas madeiras, nos ataques precisos dos metais e na utilização do piano como instrumento de orquestra. O final, aparentemente triunfante, não nos permite descansar. Pelo contrário, culmina numa coda abrupta e caótica que comprime e distorce o material temático prévio. Prokofiev expõe, deste modo, a urgência da defesa da paz, que a todos convoca, a grandeza do seu triunfo e a ameaça da sua fragilidade.
A 5.ª sinfonia estrearia em Janeiro de 1945 e seria mais tarde acolhida como uma das bandas sonoras da vitória da paz. A par de outras composições, como a 7.ª sinfonia de Shostakovich, é ainda hoje símbolo da resistência do povo soviético durante a II Guerra Mundial e do seu papel heróico na derrota do nazi-fascismo.
Os compositores

Viktor Ullmann
(1898-1944)
foi um compositor e maestro austro-checo, cuja obra reflecte uma síntese de influências modernas e tradicionais. Após ser deportado para o campo de concentração de Theresienstadt, Ullmann continuou a compor, criando peças que abordavam tanto a beleza quanto a tragédia do seu tempo. Entre as suas composições mais notáveis estão os 3 Lieder, Op. 37, em particular o primeiro, Schnitterlied, que expressa um profundo simbolismo de trabalho e sofrimento. Viktor Ullmann foi assassinado em Auschwitz em 1944, onde a sua vida e arte foram tragicamente interrompidas.

Ilse Weber
(1903-1944)
foi uma compositora e poeta checa de origem judaica. Após ser deportada para o campo de concentração de Theresienstadt, continuou a compor, criando várias canções que reflectiam a dor e a esperança dos prisioneiros. Entre as suas obras mais conhecidas estão Ich wandre durch Theresienstadt, Wiegenlied e Ade, Kamerad!, que expressam a sua resistência emocional diante da brutalidade do regime nazi. Ilse Weber foi finalmente executada em 1944, com o seu filho pois, iludida, quis deixar com ele Theresienstadt para se juntarem os dois ao marido, que estava preso em Auschwitz.

Karl Amadeus Hartmann
(1905-1963)
foi um compositor alemão cuja obra reflecte as tensões e os horrores do século XX. Durante a Segunda Guerra Mundial, ele tornou-se crítico do regime nazi e afastou-se do ambiente musical oficial. A sua peça Miserae (1933-34), dedicada aos prisioneiros do campo de concentração de Dachau, é uma das suas obras mais significativas, expressando a sua indignação face às atrocidades cometidas pelo regime nazi.
Os Protagonistas do Concerto

Maestro Vasco Pearce de Azevedo
Nascido em Lisboa, Vasco Pearce de Azevedo obtém o bacharelato em composição na Escola Superior de Música de Lisboa estudando com Christopher Bochmann e Constança Capdeville. Frequenta cursos de direcção orquestral e direcção coral em Portugal, Espanha, França e Bélgica. Conclui em 1995 o mestrado em direcção de orquestra e coro na Universidade de Cincinnati (EUA). Conquista em 1997, o 3.º prémio no Concurso Maestro Pedro de Freitas Branco e em 1996 uma Menção Honrosa no II.º Concurso Internacional Fundação Oriente para Jovens Chefes de Orquestra. Conquista em 1988, com o Coro de Câmara Syntagma Musicum, o 1.º prémio no Concurso Novos Valores da Cultura na área da Música Coral e uma Menção Honrosa na área de Composição do mesmo concurso. É desde 1995 Maestro Titular da Sinfonietta de Lisboa. Tem dirigido as orquestras Sinfónica Portuguesa, Metropolitana, Nacional do Porto, Filarmonia das Beiras, Clássica do Sul, Clássica do Centro e Sinfónica Juvenil, entre outras. Actualmente é Professor na Escola Superior de Música de Lisboa.

Armando Possante
Barítono
Professor de Canto na Escola Superior de Música de Lisboa. Ensinou no Instituto Gregoriano durante mais de 25 anos e orientou workshops em vários países. É director musical e solista do Grupo Vocal Olisipo e do Coro Gregoriano de Lisboa e foi membro convidado do Nederlands Kamerkoor.
Conquistou vários prémios: nos concursos de melhor interpretação de Bach, no 1.º Concurso Vozes Ibéricas, melhor interpretação de uma obra portuguesa no Concurso Luísa Todi e o 1.º prémio no 7.º Concurso de Interpretação do Estoril. Tem trabalhado também na área da música contemporânea, tendo apresentado em primeira audição obras de compositores como Christopher Bochmann, Ivan Moody, Bob Chilcott, Eurico Carrapatoso, Luís Tinoco, António Pinho Vargas, Pedro Amaral, Vasco Negreiros, Sérgio Azevedo, Carlos Marecos e Nuno Côrte-Real, entre muitos outros.
Estreou-se em ópera no papel de Guglielmo, em Così fan tutte de Mozart, tendo posteriormente participado em produções das óperas L’Amore Industrioso, As Variedades de Proteu, Dido and Aeneas, The Fairy Queen, Venus and Adonis, La déscente d’Orphée aux Enfers, La Donna di Génio Volubile, La Dirindina, Don Giovanni, A Floresta, Corpo e Alma, Jeremias Fisher, O Sonho, L’elisir d’amore e Gianni Schicchi.

Ricardo Martins
Pianista
Ricardo Martins concluiu, em 2014, o Mestrado em Ensino de Música na Escola Superior de Música de Lisboa, sob a supervisão de Jorge Moyano e Miguel Henriques. Participou como pianista acompanhador em numerosos eventos, como concertos, concursos e masterclasses, assim como em workshops para correpetidores com João Paulo Santos, Claudio Desderi, Jory Vinikour e Paul McCreesh (inseridos nos cursos ENOA).
Participou como correpetidor em várias produções de ópera, destacando-se a ópera Ohneama de João Guilherme Ripper, com maestro Marcelo de Jesus (2016), e o Atelier de Ópera da Orquestra Metropolitana de Lisboa, com A Flauta Mágica (2017-2018) e Don Giovanni (2018-2019) de Mozart, com encenação de Jorge Vaz de Carvalho e direcção de Pedro Amaral.
Lecciona como professor Assistente Convidado de Práticas de Ensaio na Escola Superior de Música de Lisboa. Trabalha frequentemente com o Coro Gulbenkian como pianista acompanhador, e como instrumentista convidado da Orquestra Gulbenkian. A solo, conta com recitais no Museu Nacional da Música, inseridos nos ciclos “À tarde no Museu” (2016 e 2017) e “Músicas do Acervo” (2017, 2018 e 2019), e também no Auditório CGD do Instituto Superior de Economia e Gestão, no contexto das comemorações dos 40 anos do Instituto Gregoriano de Lisboa.
Orquestra Sinfonietta de Lisboa
Fundada em 1995, a Sinfonietta de Lisboa tem como director artístico e maestro titular Vasco Pearce de Azevedo. Realizou já numerosos concertos, tendo-se apresentado em Lisboa no CCB e na Fundação Calouste Gulbenkian; no Porto, no Teatro Rivoli; e ainda em vários concelhos do País. Um dos objectivos principais da Sinfonietta de Lisboa é o da divulgação da música de compositores portugueses contemporâneos. É nesse contexto que se inserem as estreias absolutas de obras de vários compositores portugueses e estrangeiros, bem como primeiras audições em Portugal. Desde 2004, a Sinfonietta de Lisboa foi convidada a realizar o concerto de abertura da Festa do Avante!, tendo acompanhado os solistas Pedro Burmester, António Rosado, Mário Laginha, Cátia Moreso, Armando Possante, Mafalda Nejmeddine e Paulo Soares, entre outros, e ainda o Coro Lisboa Cantat. Gravou música original de Bernardo Sassetti para os filmes O Milagre Segundo Salomé, Um Amor de Perdição e Second Life, e para a peça de teatro Dúvida de John Stanley. Participou no Filme do Desassossego de João Botelho, interpretando a música original de Carrapatoso A Morte de Luís II da Baviera. Entre 2020 e 2024 gravou música original de Mário Laginha para os filmes Ordem Moral e Lavagante, e ainda música original de Filipe Melo para os filmes Camera Cafe e Mala Persona.

O genocídio e a destruição em Gaza vitima milhares de inocentes
A causa e o sofrimento do povo palestiniano

Citemos um grande músico, Daniel Barenboim. «Perante uma sinfonia de Beethoven, o Don Giovanni de Mozart ou o Tristão e Isolda de Wagner, todos os seres humanos são iguais». Compreende-se a razão de este músico (que é judeu) ter criado, juntamente com o escritor palestiniano Edward Said, a West-eastern divan orchestra, cujos integrantes são em grande parte de origem israelita ou árabe. A iniciativa assume que «não existe solução militar para o conflito israelo-árabe» mas que «podem ser construídas pontes que encorajem as pessoas a ouvir as narrativas umas das outras», na base de «igualdade, cooperação e justiça para todos». Tem tido sucesso artístico, mas escasso sucesso político. Os sionistas rejeitam-na. Para os palestinianos – houve um concerto em Ramallah em 2005 – é demasiado ilusório imaginar por essa via pontes entre quem se vê expulso da terra onde vive há séculos e uma colonização que ocupa, expropria, descrimina, mata, nega qualquer direito à sua existência enquanto povo. Cuja agressão indiscriminada assume uma dimensão de genocídio.

A música - e a arte e a cultura em geral - não podem, por muito potentes que sejam, pôr fim efectivo a relações de dominação assentes na violência e na desigualdade. Essas têm de ser combatidas em mais frentes do que as da cultura e da arte. Mas a cultura e a arte podem assumir um muito importante papel no inspirar e mobilizar do que existe de melhor entre os humanos, Podem (e talvez devam) participar desse combate, e cabe à música um contributo particular. Toda a história da emancipação humana o testemunha. Não há processo revolucionário que não seja reconhecível pelas suas músicas, sejam a França de 1793, a Rússia de 1917, a Cuba de 1953, o Portugal de 1974, seja qualquer outra revolução verdadeira.
A música que aqui interessa junta e cria laços. Se for tocada, e cantada, e ouvida em conjunto, torna tais laços corais e colectivos. Se se integra na luta dos povos, acrescenta enorme força combativa. Se ganha um protagonismo histórico (como é o caso da Internacional) une para além de fronteiras seja de que espécie forem. É nesse sentido que, como diz Barenboim, nos pode tornar iguais enquanto humanos.
Na peça de Mahmoud Abuwarda A Story to Tell que terá a sua estreia absoluta nesta Festa do Avante!, a música traz até nós a causa e o sofrimento do seu povo, o povo palestiniano. Experiências vividas pelo próprio compositor, que diz sobre a obra: «apresenta-se como uma lembrança de que a música não é apenas entretenimento – é memória, protesto, e curativo. É um farol para aqueles que sofreram e um apelo a que as suas histórias nunca seja esquecidas.»
A nós, desde sempre solidários e apoiantes da resistência e da luta palestiniana, traz-nos por um outro meio a mensagem sempre presente: a de que está a ser vítima de genocídio uma parte de nós. Que estão há muitas décadas a ser massacrados na Palestina humanos como nós. E, por muito que nos custe reconhecê-lo, estão a ser massacrados por outros humanos, com o apoio e a cumplicidade de outros, e com o olhar para o lado de tantos outros. Com esses, efectivamente, nunca será possível “construir pontes”. Não são nossos iguais.
Há é que arredá-los do caminho, pelos mesmos meios com que já foram historicamente várias vezes arredados, incluindo os da cultura e da arte tal como Mahmoud Abuwarda nos traz. Do caminho humano para a igualdade e para a paz – que é, em si mesma, a plena realização da igualdade entre os humanos. Quando dizemos: “A Palestina vencerá!” é também de uma vitória nossa que estamos a falar.

Mahmoud Abuwarda
(n. 1990)
Compositor, guitarrista clássico e docente palestiniano. A sua música combina diferentes dinâmicas, géneros e linhas estéticas e melódicas, e surge em áreas tão diversas como bandas sonoras de jogos de vídeo, suites instrumentais, jazz sinfónico e contemporâneo, música sinfónica. Tem actividade regular como solista de guitarra clássica, com um repertório diversificado. Na sua actividade docente destaca-se o ensino de teoria musical e composição, história da música, guitarra e teoria musical tendo dado aulas na Universidade de Birzeit (bombardeada pelos sionistas) e no Zemas International College, em Istambul. É director musical e regente dos coros Al Sununu e Zemas International College.